terça-feira, 23 de junho de 2009

A arte da convivência

“A natureza dos homens é a mesma, são os seus hábitos que os mantêm separados”. A afirmação de Confúcio está coberta de verdade. Os hábitos espelham valores, princípios, concepções de mundo e modos de vida. Assim, um hábito pode aproximar ou distanciar uma pessoa da outra; pode gerar simpatia ou antipatia; promover sintonia ou instigar atritos e contendas.
A propósito do assunto, um cachorro entrou em cena. Aliás, hoje é muito comum observar determinados animais figurando como personagens principais da casa. O tempo era de carnaval, mas desta vez o grande folião foi o cachorro preso no quintal do vizinho. Sei dizer que o animal se investiu de um sentimento de desespero, protesto, angústia ou coisa que o valha e não sossegou. Passou a latir de modo incessante e perturbador, noite adentro.

No dia seguinte a vizinhança se reuniu para estudar providências. Uns sugeriram que não se deveria falar com o dono do cachorro, dado que ele poderia não gostar e o resultado ser pior do que o quadro estabelecido. Alguém chegou a postular que o negócio era mesmo aguardar a morte do bicho, admitindo que só o fim do tempo de vida do cão resolveria a situação. Ouvi também a ponderação de que a paciência seria uma boa medida para o caso. E dizia-se: ‘Façamos de conta que não estamos ouvindo’. Haja ouvidos que não ouçam!

Já se disse que as idéias movem o mundo. Porém, parece crescer uma outra tendência: a de que os cachorros movem as pessoas, que se movem em face dos cachorros. Refletíamos sobre isso, quando uma amiga relatou sua história: Teve de mudar de residência. Eis que ali se aproximou uma senhora e, sem cumprimentá-la, pedir seu nome ou desejar boas vindas, afirmou: ‘Então temos um novo vizinho’. Referia-se ao cachorro que estava chegando com a mudança.

Numa sociedade permeada de espíritos caninos, cachorros se sobressaem aos humanos. As pessoas passam a ter menos importância e receber menos atenção que os animais. A convivência equilibrada e responsável com o semelhante, com os animais e com a natureza é uma verdadeira arte. É preciso polir o/a artista que está dentro da gente, o que requer sensibilidade, alteridade e respeito mútuo. Exige que se valorize e cuide as pessoas como pessoas e os animais como animais, evitando inverter os papéis.

Andava nesse vai e vem com o pensamento no exato momento em que o ônibus dobrou a esquina. Ali no muro alguém – movido sabe-se lá por que razão – havia escrito com alta perspicácia: “O segredo de viver em paz com todos consiste na arte de compreender as diferenças”. A beleza da epígrafe traz exigências muitas vezes difíceis de perceber e praticar. Conviver é muito mais que tolerar ou fazer “vistas grossas”. É predispor-se a ser com o outro/a a partir dele/dela, sem, contudo, negar a própria identidade.

O (supostamente) mais inexpressivo dos atos pode causar grandes transtornos à convivência. No preciso momento dessa conversa, achegou-se um amigo para relatar um ocorrido. Disse ter visitado uma família onde é habitual fumar dentro de casa. O mal estar gerado pelos respingos daquela prática viciosa fez com que ele sentenciasse a si mesmo: ‘Jamais retornarei a essa família’. De fato, determinados hábitos podem afastar para sempre uns dos outros.

Ao analisar as experiências cotidianas vividas e descritas, o amigo saiu-se com a seguinte afirmação: “De perto, ninguém é bem certo”. Todos temos somas virtuosas, mas nos acompanham também hábitos e comportamentos defeituosos que, não raro, acabam prejudicando a boa convivência entre pessoas, grupos, comunidades, povos e com a nossa Casa Comum.

Somos da mesma natureza, mas com diferenças que, às vezes, chegam a ser enormes e até intoleráveis. Em última análise buscamos os mesmos fins, mas por caminhos ou descaminhos diversos. Dar-se conta disso é fundamental. A convivência harmoniosa em meio a esse mundo conturbado, cheio de conflitos, crises e problemas de toda ordem é uma arte. Sejamos artistas autênticos. E como diz o cantor e compositor Reynaldo Bessa: “A arte é a arma contra a miséria das coisas”!


Dirceu Benincá,
Prof. e doutorando em Ciências Sociais na PUC/SP.

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